Wicca X Bruxaria Tradicional

25/06/2012 21:20

 

 

   Existe grande confusão, tanto entre principiantes quanto entre alguns wiccanos de longa data, sobre o que é a chamada “bruxaria tradicional” e quais são suas semelhanças e diferenças em relação à Wicca. Existem muitas discussões sobre isso na Internet, poucas delas idôneas ou bem embasadas. Para podermos adentrar nesta complexa matéria, devemos buscar obras de acadêmicos e historiadores sérios, para não corrermos o risco de sermos partidários, e compreender como a prática da bruxaria ressurgiu em nossos tempos.

   Em todas as sociedades antigas há vestígios de magia. Em muitos casos, ela estava associada ao culto de divindades pagãs: Circe, famosa bruxa grega, era sacerdotisa da Deusa Hécate; os sacerdotes egípcios, druidas celtas e magi persas são famosos por suas atividades mágicas e há ainda muitos outros exemplos. A recitação de encantamentos, fabricação de amuletos e talismãs, uso dos nomes secretos de divindades, feitiços com placas de chumbo e adivinhação eram algumas das práticas comuns.

   A partir do século IV a.e.c. (antes da era comum), centenas ou mesmo milhares de pessoas se apresentavam como feiticeiros ou adivinhos profissionais, cobrando dinheiro em troca de magia. Certas práticas mágicas eram vistas com receio em Roma, a ponto de Cornelius Sulla decretar pena de morte, em 81 a.e.c., para “videntes, encantadores e aqueles que usam a feitiçaria com propósitos malévolos, que invocam demônios, desencadeiam as forças da natureza [ou] empregam bonecos de cera com fins destrutivos”.

   Com o estabelecimento da Igreja Cristã como instituição oficial no século IV e.c., tanto as antigas religiões pagãs quanto à prática mágica (e evidentemente a combinação das duas) passaram a ser duramente reprimidas. Mesmo assim sobreviviam de uma forma ou de outra. Na Inglaterra medieval, o termo “wicca” (pronunciado “witcha”) e seu feminino “wicce” (que gerou o atual “witch”) designavam os benzedores e velhas sábias das aldeias, que preparavam remédios, poções e pequenos feitiços. As bruxas eram frequentemente as parteiras e as enfermeiras. Vestígios do paganismo também sobreviveram (a Europa se tornou cristã apenas no século XII, e mesmo depois houve refúgios pagãos), mas não se pode dizer que as bruxas de então eram pagãs, ou membros de algum culto próprio.

   Apesar de já haver decretos eclesiásticos e bulas papais contra as bruxas, é a partir do século XIV que começará o fenômeno de “caça”, que matará tantos inocentes. A publicação do infame Malleus Malleficarum, em 1486, manual de caça às bruxas mais difundido na Europa, fará com que os séculos XV e XVI sejam os mais duros. As estimativas variam muito, mas sabemos que de 30000 a 200000 pessoas foram mortas no período.

Certamente algumas das pessoas acusadas praticavam algum tipo de magia. Sabe-se que pelo menos três dos dezenove jovens enforcados em no famoso caso Salem, em 1692, realmente faziam malleficia (feitiços). Mas a grande maioria provavelmente não possuía qualquer tipo de envolvimento.

   Paradoxalmente, este período será o auge da alta magia, ou seja, a magia ritualística complexa, praticada por pessoas letradas e cultas (em oposição à  magia do povo ignorante, ou baixa magia). A alquimia passa a ser estudada em vários pontos da Europa; o conhecimento das propriedades místicas de plantas, metais, etc. é sistematizada na obra “Filosofia Oculta” do alemão Cornelius Agrippa, publicada em 1533 e acima de tudo, proliferam-se os livros conhecidos como grimórios, contendo métodos ritualísticos para evocar demônios, diversos feitiços e procedimentos cerimoniais.  O grimório mais famoso é chamado de “A chave de Salomão”.

   No início do século XVII, apesar de ainda ser muito perseguida em várias regiões da Europa, a magia estava na moda na Inglaterra. Houve debates públicos na Universidade de Oxford sobre a eficácia de feitiços e poções, a rainha consultava-se com o mago John Dee e o benzedor Simon Forman escreveu vários manuais de baixa magia. Mesmo assim, o último julgamento contra bruxas só ocorreu na Inglaterra em 1712, e na Alemanha em 1775. Neste ponto foi surgindo uma onda crescente de ceticismo, e a maior parte da população não acreditava em magia.

   Apenas na segunda metade do século XIX a alta magia volta a estar em voga, sobretudo graças à obra de ocultistas franceses, sendo Éliphas Lévi e Pappus os maiores nomes deste movimento. O paganismo é visto por muitos como algo bucólico e positivo e também entra na moda. Em 1862, o historiador e filósofo francês Jules Michelet publica o livro “A feiticeira”, onde levanta a hipótese de que as bruxas da Idade Moderna poderiam fazer parte de um culto pagão, ideia compartilhada por alguns pensadores daquele século, como Jakob Grimm.

   Mas enquanto a alta magia cerimonialista voltava a ser cultivada, entre ocultistas e nas sociedades esotéricas que estavam se formando, a bruxaria ainda estava no ostracismo. Dois fatos ocorridos no fim do século serão decisivos para a mudança desta situação. O primeiro é a publicação do livro “O ramo de ouro”, em 1890, pelo famoso antropólogo inglês James Frazer, cuja ideia central é a de que todas as religiões e mitologias partilham ou provêm de uma fonte comum: um culto de fertilidade baseado na adoração de uma Deusa Mãe da natureza e no Deus Consorte, um rei sagrado associado à morte e à ressurreição. Ainda nesta obra, Frazer dirá que há seis datas, os “festivais do fogo”, que estariam enraizados no imaginário cultural europeu: os solstícios, os equinócios e mais duas datas, Beltane e Halloween.

   Já o segundo fato é a publicação de “Aradia, o evangelho das bruxas”, escrito pelo estadunidense radicado na Inglaterra Charles G. Leland. Ele, ávido leitor de Michelet, teria descoberto um culto pagão bruxo na Itália, e através da bruxa Maddalena, descreve vários feitiços, orações e rituais das bruxas. Neste livro vemos um culto bruxo centrado na adoração de uma Deusa e um Deus.

   O maior marco do renascimento da bruxaria é, no entanto, o lançamento de outro livro: “O culto das bruxas na Europa Ocidental” em 1929. Sua autora, Margaret Murray, era uma respeitada egiptóloga e antropóloga inglesa, e neste livro lança sua tese de que as bruxas formavam um culto pagão, remontando à Pré-História e que teria sobrevivido até a modernidade de forma ininterrupta. Embora esta tese já tenha sido rejeitada há muito tempo, causou grande furor em sua época, nos meios acadêmicos e na população. Os detalhes do culto bruxo são retirados dos depoimentos das bruxas nos tribunais da Inquisição, na Idade Moderna, mesmo daqueles obtidos sob tortura. As bruxas se reuniriam em dois tipos de celebração: os sabbaths, oito vezes por ano, e os esbats, nos demais encontros. Adorariam um deus de chifres, confundido pela igreja como o Diabo e se reuniriam em covens de treze membros.

Ao longo da década de 1930, alguns grupos foram formados baseando-se no livro de Murray (complementado com rituais de magia cerimonial) e alguns “covens de bruxas” apareceram na Inglaterra. Quando o funcionário público aposentado Gerald B. Gardner entra para a sociedade esotérica Crotona Fellowship, em New Forest,  e encontra um grupo de bruxos, o mais provável é que fosse um deste covens “murrayanos”.  Não sabemos se Gardner realmente acreditava na antiguidade do culto ao qual foi iniciado em 1939 ou se propositadamente forjou a ideia, mas foi assim que ele mais tarde o divulgou.

   Empolgado com a ideia do culto bruxo, quis escrever um livro sobre o assunto, mas os membros do coven o impediram, uma vez que ainda estava em vigor uma lei inglesa que considerava a bruxaria uma fraude passível de punição (o Ato de Feitiçaria de 1735), que recentemente tinha levado uma médium aos tribunais. Em 1949, ele teria recebido autorização para escrever sobre bruxaria, mas de maneira ficcional, e Gardner publica “High Magic’s Aid”.

  Gardner se desvincula do grupo em algum momento em torno dessa data. Ele disse que achava os ensinamentos recebidos truncados e incompletos, e resolve complementá-los com material cerimonial retirado da “Pequena Chave de Salomão”, editada por MacGregor Mathers, e da obra de Aleister Crowley. Nessa época, sabemos que o culto estaria voltado para a um Deus Cornífero e também a uma Deusa, os oito sabbaths estariam presentes, o uso de ferramentas mágicas e do círculo ritual, bem como os rituais de iniciação para os três graus, já estariam totalmente desenvolvidos. É possível que Gardner tivesse recebido esses ensinamentos do coven de New Forest.

   Em 1952, Gardner conhece Doreen Valiente, e a inicia no ano seguinte. Ela reformula seu sistema de bruxaria: elimina a maior parte da influência de Crowley, compõe várias partes da liturgia, como a Carga da Deusa e a Runa das Bruxas, aumenta o papel do feminino sagrado e introduz o conceito de Deusa Tríplice associada às fases da lua (que provém de “A Deusa Branca”, de Robert Graves, publicado em 1948), que passa a ser fundamental. Com a introdução de novos membros ao coven, a Wicca toma uma forma muito parecida com a que é praticada hoje.

   Em 1954, Gardner publica “Bruxaria Hoje”, onde divulga abertamente que esta prática sobrevive na Inglaterra e que ele próprio é um bruxo. É importante observar que ele não chama esta religião de “Wicca”. O termo “wica” aparece no livro para designar os membros do culto, que é chamado apenas de “bruxaria”: não haveria outras correntes, esta religião seria aquela praticada desde a Antiguidade (ou ainda anteriormente) e que teria passado pela Idade Moderna até chegar àquele ponto.

   O livro realmente causa impacto e a religião será aos poucos largamente disseminada. Mas algumas pessoas resolvem criar seus próprios sistemas de bruxaria: Cecil Williamson, antigo amigo de Gardner e fundador de um Museu de Bruxaria (em 1949, vendido a Gardner três anos depois); Robert Cochrane, um iniciado gardneriano que resolve fundar sua forma de bruxaria, a tradição 1734. Cochrane é famoso por seu desprezo a Gardner e por ter cometido suicídio ritual em 1966. Outros exemplos incluem a Tradição Feri, a Stregheria (fundada pelo estadunidense Raven Grimassi), o dianismo e a Tradição Reclaiming, de Starhawk. Muitos desses grupos já foram considerados vertentes da Wicca, mas eles próprios não se denominam assim.

   O que é, então, a bruxaria tradicional? São todos os movimentos que buscam recuperar o culto bruxo, ou apenas a prática mágica dos bruxos, diferentes da Wicca. Alguns se aproximam muito desta, enquanto outros sistemas usam grimórios e livros sobre demonologia para fundamentarem suas práticas.

   O termo “tradicional” não implica que são anteriores à Wicca. Pelo contrário, como o historiador Ronald Hutton chama à atenção, “todos os indivíduos ou grupos que reinvidicaram serem os portadores da ‘verdadeira bruxaria ancestral’ o fizeram depois da publicação do Bruxaria Hoje, em 1954”. Apenas em 1959, no livro “O significado da Bruxaria”, Gardner usará o termo “Wicca” (agora grafado com dois “c”) para se referir à religião.

   Mais informações sobre o tema podem ser obtidas nas obras de Ronald Hutton e Philip Heselton. Uma excelente dissertação de mestrado, “Os bruxos do século XX: neopaganismo e invenção de tradições na Inglaterra do pós-guerra”, defendida por Janluis Duarte na Universidade de Brasília em 2008, pode ser lida a partir do link: https://hdl.handle.net/10482/3394

 

Voltar para Principiantes