Adaptações e variações no modus operandi dos bruxos do hemisfério sul

14/12/2012 19:10

 

 

 

   A Wicca surgiu no Reino Unido, e entre as muitas fontes que colaboraram para sua criação, podemos citar as festividades dos povos celtas, os rituais de magia dos ocultistas franceses e ingleses e elementos dos cultos gregos e romanos. Em suma, é uma religião europeia, que floresceu nos Estados Unidos e em várias partes do mundo.

   É natural que brasileiros, australianos e diversos outros povos que habitam o hemisfério sul também se sintam atraídos pela bruxaria e queiram praticá-la, mesmo que não possuam alguma ancestralidade céltica ou estejam inseridos dentro de um contexto histórico parecido com os dos descendentes das “bruxas” da Idade Moderna. O problema surge quando adaptamos certas práticas sem um mínimo de conhecimento sobre sua origem e finalidade. Não devemos fazer isto ou aquilo apenas por lermos, mas sim devemos nos embasar em conhecimentos sólidos, teóricos e práticos. Este artigo pretende trazer à tona algumas perguntas pertinentes sobre as adaptações que a Arte nos exige neste hemisfério, perguntas que já foram muitas vezes colocadas, mas raramente respondidas e que merecem sérias considerações.

   A primeira adaptação é óbvia e de fato é a única que tem sido largamente feita pelos wiccanos brasileiros: a data dos sabbaths. Yule é comemorado no hemisfério norte no dia 21 de dezembro pois celebra o solstício de inverno. Como certos costumes típicos desta data lembram o Natal, como por exemplo a confecção do boneco do rei Carvalho, os bruxos do hemisfério norte compartilham do “clima natalino” que a sociedade em geral está vivendo. Isto é natural, pois muitos costumes cristãos vieram de tradições folclóricas originalmente pagãs. Se um bruxo vive na Argentina e quer celebrar Yule em dezembro, para de certa forma se aproveitar deste “clima natalino”, terá que saudar o inverno em pleno verão. De fato, as crianças cristãs argentinas devem ficar curiosas sobre o porquê do papai Noel vestir roupas tão quentes se a época do frio e da neve é junho... Da mesma forma, devemos celebrar Ostara, o equinócio da primavera, durante a primavera, mesmo que isso implique em comer ovos de chocolate em setembro.

   Sei de bruxos que possuem um costume bastante bizarro: invertem os sabbaths menores, preservando as estações, mas mantêm os sabbaths maiores. Um pouco de reflexão mostrará que tal prática não possui nenhum fundamento e não pode se manter, pois anularia por completo o mito wiccano e a própria razão de celebrarmos os sabbaths. Qual é o sentido em saudar as faces jovens dos deuses em setembro, logo em seguida representarmos a morte e viagem do Deus ao submundo (Samhain) e imediatamente depois comemorarmos a maturidade e o auge das Divindades em Litha?

Analisemos agora um ponto de fundamental importância para a prática religiosa e mágica dos bruxos: o círculo mágico. Por que o traçamos em deosil? A maioria dos wiccanos experientes sabe a resposta: para acompanhar o movimento do sol. Gerald Gardner nos confirma isso em seu livro “Com o auxílio da Alta Magia” (1) :

   “Em seguida, indo até o lado do leste do círculo, ele [Thur] disse: ‘Conjuro-vos, incito-vos e convoco-vos, vós, Poderosos do Leste, para guardar este círculo’. Então, fez ele as mesmas proclamações aos Poderosos do Sul, do Oeste e do Norte, um de cada vez. (...) Com tudo isso realizado, Thur foi até cada braseiro, um de cada vez, começando no leste, passando em direção ao sul, pelo caminho do sol, agitando os carvões, seguido de Morven, que lançava sobre eles incensos frescos de aloés, noz-moscada, gum-bengerman e almíscar”.

    O grifo é meu. Estabelecido isso, notemos que os bruxos de forma geral não trabalham em sentido widdershins. Conforme nos conta Doreen Valiente (2), “o movimento anti-horário, ou tuathal, é um movimento de magia inversa e de maldição”. Acontece que o movimento aparente do sol no hemisfério norte de fato segue o sentido horário, mas no hemisfério sul ocorre justamente o contrário: o movimento do sol é anti-horário! Para nos mantermos coerentes, deveríamos fazer rituais no sentido widdershins. Os Farrars (3) já haviam tocado no assunto em seu “Witches’ Bible”, dizendo que “um movimento mágico widdershins é considerado negro ou malévolo, à menos que ele tenha um significado simbólico preciso tal como uma tentativa de retornar no tempo. (...) Estamos interessados em ouvir da parte dos bruxos do hemisfério sul (onde naturalmente o sol se move no sentido anti-horário) sobre seus costumes em movimentos rituais, orientação dos elementos e posicionamento do altar”.

   Poderíamos discutir ainda outros pontos interessantes. Mas vamos encerrar analisando o problema da correspondência elementos/pontos cardeais. O uso dos quatro elementos na magia é algo praticamente universal entre os bruxos, recebendo mais ou menos ênfase dependendo da tradição. Muitos supõem, com boa dose de razão, que a origem do estudo destes elementos está em Empédocles. Gostaria aqui de chamar atenção para o curioso fato de que culturas muito distintas, sem possuir contato com os gregos, chegaram em classificações muito semelhantes dos elementos fundamentais da matéria. Os japoneses antigos, por exemplo, possuíam os Gogyo (cinco elementos): terra, água, fogo, ar e céu; os indianos possuíam os Tattvas ar, água, fogo, terra e vazio; os babilônios classificavam como vento, fogo, terra, mar e céu.

Mas e a correspondência com os pontos cardeais? Devem ser adaptadas no hemisfério sul? Esta questão é bem polêmica. Doreen Valiente nos diz que a correspondência habitual só é válida no Reino Unido (4):

 

   “Esta atribuição está baseada na qualidade dos ventos prevalecentes. Na Grã-Bretanha, o vento do sul traz calor e aridez, enquanto o vento do oeste normalmente traz condições de tempo chuvoso e quente. Portanto, estes cantos são considerados como os lugares do fogo e da água respectivamente. O vento do leste é frio, seco e revigorante; por isso esse é o lugar dos poderes do ar. O vento do norte é frio e congelante, vindo do lugar onde neva o tempo todo. Ele representa a escuridão da Terra.

   Em outras partes do mundo, naturalmente, essas condições não são aplicáveis; por isso o bruxo realmente talentoso, diferentemente daquele que meramente leu sobre o assunto em livros, irá observar os ventos prevalecentes em seu próprio país, e irá invocar os Quatro Elementos de maneira apropriada”.

 

   Entretanto, as correspondências devem ter entrado na Wicca por influência das obras de ocultistas. E através delas podemos ver que as associações clássicas dos elementos funcionam muito bem, por exemplo, na França, uma vez que são descritas por Éliphas Lévi em 1861, no “Dogma e Ritual da Alta Magia” e retificadas por Papus em sua obra “Tratado Elementar de Magia Prática” (5).  Tampouco os bruxos americanos sentiram a necessidade de mudar as correspondências e em virtualmente todos os livros sobre Wicca publicados nos Estados Unidos as encontraremos sem alteração. Como exemplo, consultar (6).

   No nosso caso, temos pelo menos quatro opções: seguir o conselho de Doreen e reestabelecer as correspondências com base nos ventos; continuar fazendo o círculo tal como os ingleses o fazem; traçar o círculo em widdershins, mantendo as relações tradicionais com os pontos cardeais, mas alterando a ordem em que saudamos os Poderosos: água-fogo-ar-terra; e por fim, podemos traçar o círculo em widdershins, mas manter a ordem em que os elementos são chamados, associando assim o ar ao oeste e a água ao leste, e mantendo os outros dois pontos.

   Na Wicca não há pontífices ou reis para proclamar esta ou aquela atitude como a correta. Não haverá uma bula ou súmula para orientar os sacerdotes em sua prática. A única coisa que podemos fazer é seguir nossa intuição, experimentar, testar e compartilhar informações e descobertas. Só não façamos nada sem antes nos prepararmos, estudarmos e termos conhecimento de causa. 

 

   Fernando Meyer.

 

Referências:

(1) GARDNER, Gerald. Com o auxílio da alta magia, capítulo XVI "Fazendo o grande círculo".

(2) VALIENTE, Doreen. Enciclopédia da Bruxaria, verbete "círculo mágico".

(3) FARRAR, Janet e FARRAR, Stewart. Witches' Bible, sobre a estrutura do ritual de abertura.

(4) VALIENTE, Doreen. Enciclopédia da Bruxaria, verbete "Airts, as Quatro".

(5) PAPUS. Tratado elementar de magia prática, capítulo XV "O magista e o macrocosmo".

(6) BUCKLAND, Raymond. Buckland's complete book of witchcraft, lesson five: "covens and rituals".